CONSELHO COMUNITÁRIO DE JERICOACOARA
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No final do século XX assistimos à adoção em larga escala da democracia como forma de governo. Após um período de tensão devido às incertezas decorrentes da guerra fria, o mundo cede ao modo de produção capitalista e sua demanda por governos democráticos como garantia para um convívio pacífico entre nações e o estabelecimento de um mercado global de bens e serviços. A democracia, em sua etapa recente de universalização, desenvolve-se numa conjuntura tecnológica sem precedentes: simultaneamente à apreensão de valores e virtudes democráticos dá-se a expansão dos meios eletrônicos de difusão de informações, especialmente aqueles que resultaram das pesquisas em redes digitais de fluxo descentralizado, como a Internet.
Uma questão clássica da democracia é como assegurar, de um modo justo, a participação dos membros da comunidade em seus processos deliberativos. Na Atenas do século V a.C., a democracia era praticada adotando-se a forma de Assembléia popular; todos os homens adultos cidadãos da polis podiam debater e votar os assuntos pertinentes ao interesse geral. Nesta época, a população de Atenas totalizava em torno de 440 mil habitantes – descontados mulheres, escravos e estrangeiros, que não possuíam direito de cidadania, restavam pelo menos 20 mil habitantes habilitados a participar da Assembléia popular. No entanto, uma democracia participativa nos moldes de uma Assembléia popular dependia necessariamente de uma comunidade que fosse razoavelmente pequena, onde todos os seus membros pudessem estar próximos o suficiente para ter acesso ao local de deliberação e, conseqüentemente, manter seu interesse de participar através da formação de uma identidade comum; já nas democracias da atualidade uma Assembléia nesses moldes seria inviável devido às grandes distâncias a serem percorridas, gerando não apenas desinteresse da parte dos cidadãos como também uma imensa dificuldade de operacionalizar tal instituição. (Dahl, 1999: 123)
A solução para o dilema da participação nas modernas democracias foi o princípio da representatividade. Através de procedimentos eleitorais os cidadãos dos Estados nacionais selecionam representantes num corpo de candidatos que irão defender os interesses da comunidade em instâncias especialmente projetadas para este fim. Entretanto, nem sempre os eleitos irão corresponder às demandas da massa eleitoral; é comum a formação de grupos, oligarquias ou elites políticas que defendem uma agenda de interesses própria, deixando de lado o objetivo inicial para o qual foram delegados, sendo esta a dimensão obscura da democracia representativa. (Dahl, 1999: 130) Mesmo assim, numa conjuntura de países com territórios vastos e organizações políticas complexas, a representatividade mostra-se como solução senão perfeita ao menos possível nestas condições.
A democracia possibilitaria um convívio mais harmonioso entre nações, segundo afirmam muitos estudiosos. Esta pode ser uma regra aplicável para as grandes democracias atuais, pois a história nos relata uma realidade diferente: cidades-estado como Atenas (Grécia) e Veneza (Itália) sucumbiram à dominação estrangeira porque eram incapazes de mobilizar uma defesa eficaz. Tucídides, em História da Guerra do Peloponeso, chamava a atenção para o fato de que Atenas, devido a sua forma democrática de governo (e portanto descentralizada), não era capaz de organizar uma força militar eficiente, abrindo caminho para a dominação espartana. Nicolau Maquiavel era de tese semelhante: para o autor florentino, a unidade da Península Itálica era fundamental para assegurar não somente a paz interna como também para proteger-se dos invasores bárbaros. Até mesmo no século XX temos uma experiência de como a democracia não garantiria necessariamente a estabilidade geopolítica: finda a Primeira Guerra Mundial, o presidente norte-americano Woodrow Wilson proclamou, em 1919, que o mundo estaria finalmente se tornando seguro para a democracia – a emergência do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha provou o contrário. (Dahl, 1999: 168)
Apesar de suas deficiências, a democracia conquistou um espaço cada vez mais proeminente no século XX. Apontada como solução para as arbitrariedades dos governos e garantia para a expressão do livre pensamento, a democracia influenciou muitos movimentos sociais. Seus valores e virtudes ainda não são adequadamente compreendidos ou são simplesmente negados; a China, mesmo adotando o capitalismo e alcançando expressivas taxas de crescimento econômico, ainda renega os ideais da democracia devido, em grande parte, à sua tradição cultural e instituições políticas milenares, ainda que no período recente tenham surgido movimentos de origem popular exigindo reformas democráticas. Da mesma forma outros países orientais possuem culturas políticas refratárias aos princípios democráticos por estarem assentadas sobre uma estrutura de comando familiar e tribal, não aceitando formas de governo mais abertas. Já nos países ocidentais, especialmente os de origem anglo-saxônica, a democracia encontrou terreno fértil para se desenvolver. As reformas democráticas começam na Inglaterra a partir do século XVII, com a instauração do Parlamento; mesmo assim, as instituições democráticas inglesas somente se consolidariam por volta do século XIX, com a adoção do sufrágio universal. Os Estados Unidos já aparecem como país depositário dos valores democráticos: buscando uma alternativa à solução inglesa – um regime parlamentarista que mantém como garantia de sua legitimidade a instituição da monarquia –, os fundadores norte-americanos projetam a figura do presidente da república[1]. Desde então, o modelo republicano norte-americano seria tomado como referência para uma democracia em larga escala. Aliado ao sufrágio universal[2], os princípios de autonomia moral do indivíduo, direitos fundamentais e livre iniciativa definiriam o modelo de democracia apreciado nas sociedades modernas.
Na segunda metade do século XX inicia-se a emergência de uma nova realidade material que causaria um profundo impacto no modo de vida de todos ao redor do globo: começando paradoxalmente como um projeto militar financiado pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos, um projeto que visava à preservação de informações de segurança nacional num cenário de catástrofe nuclear foi paulatinamente se convertendo numa pesquisa acadêmica com propósitos pacíficos. Uma das iniciativas que tomaram um caráter civil foi o desenvolvimento, por Paul Baran, de uma rede de comutação por pacotes[3]. Rapidamente a tecnologia difundiu-se para além dos círculos restritos da pesquisa acadêmica, atraindo o interesse de jovens oriundos do movimento contracultural das décadas de 1960 e 70 ansiosos por novas descobertas. Explorada por interesses comerciais na década de 1980, a rede idealizada por Paul Baran, somada a outras técnicas inovadoras como o modem[4], conquistou adeptos nos ambientes tanto empresarial quanto residencial, apresentando-se como uma nova mídia de caráter bidirecional, permitindo o fluxo de dados e informações em ambas as direções. A internacionalização deste conjunto de técnicas no final desta mesma década, integrando bases de dados por todo o mundo e difundindo a comunicação de massas através de terminais domésticos (os computadores pessoais, ou PCs) através de um sistema padronizado de interação (código TCP-IP, hipertextos, linguagem gráfica WWW, entre outros), deu origem ao que conhecemos hoje como Internet.
É grande o potencial democrático contido na nova tecnologia de comunicação e informação. Rompendo com a rígida estrutura comunicacional de um para muitos, característica das mídias de massa como jornal, rádio e televisão, a Internet permite também o contato de um para um e de muitos para muitos. (Castells, 2001: 123) A Internet supre uma das necessidades fundamentais para o pleno exercício da cidadania em regimes democráticos, que é o acesso a fontes alternativas e amplas de informação confiável; no mundo contemporâneo a Internet representa um recurso importante à disposição da opinião pública, permitindo uma maior difusão de informações relevantes para a tomada de decisão consciente dos indivíduos e, por conseguinte, diminuindo a influência exclusiva do Estado sobre a determinação da agenda política. A Internet também oferece a oportunidade de ampliar e renovar a prática do marketing político, permitindo uma maior proximidade entre eleitor e parlamento, entre o cidadão e seus representantes, tornando mais efetivo o atendimento das demandas vindas da comunidade. Obviamente, esta prática depende de um esclarecimento ideal do cidadão sobre a importância do seu papel na sociedade; isso depende, a rigor, da assimilação de valores e da formação de uma cultura política adequadas à manutenção da democracia. A Internet, como repositório de informações em disponibilidade permanente, não é suficiente para orientar um espírito público no sentido de assegurar o pleno funcionamento das instituições políticas. A rede é um meio técnico cuja utilização depende fundamentalmente dos interesses de cada indivíduo.
A inovação tecnológica trazida pela Internet tem modificado o modo de relacionamento entre público e instituições governamentais. Exercendo uma pressão cada vez mais importante sobre a máquina do Estado, o público esclarecido faz uso da rede mundial de computadores para difundir críticas, denunciar a má conduta de políticos e obrigar o governo a agir de um modo mais transparente perante a sociedade. Não é por acaso que atualmente há uma preocupação constante por parte dos governos com a accountability (prestação de contas) e a responsividade[5], pois sua legitimidade depende cada vez mais do atendimento a demandas sociais. (Dahl, 1997: 25-26) Desta forma, a partir dos recursos tecnológicos disponíveis é possível projetar um ambiente de interação simbólica regido pela lógica da comunicação em rede e descentralizada, permitindo uma expressão mais efetiva da cidadania no contexto de democracias em larga escala. A Internet possibilita a realização de ágoras públicas onde as pessoas podem exprimir suas inquietações e partilhar de uma agenda coletiva de interesses. (Castells, 2001: 135)
Os reversos deste cenário promissores para as democracias modernas são os perigos advindos da utilização negativa das tecnologias de informação. A falta de privacidade, a fragilidade dos sistemas de comércio eletrônico e a ameaça à integridade do indivíduo devido à divulgação não-autorizada de dados pessoais na rede são fatores que prejudicam a formação de espaços de deliberação seguros. Além disso, nem todos os membros das atuais sociedades democráticas possuem recursos materiais necessários para acessar a Internet e estão, deste modo, à margem dos seus benefícios; a tal condição dá-se o nome de exclusão digital, atualmente reconhecida como uma forma especial de analfabetismo, uma vez que a aprendizagem de noções de informática é considerada crucial não só para a obtenção de melhores colocações no mercado de trabalho como também para um exercício mais pleno da cidadania. Dado que o capitalismo de mercado produz inexoravelmente desigualdades, tanto econômicas quanto políticas, limitando o funcionamento desejável da democracia, faz-se necessário uma melhor distribuição de renda, acesso a um sistema educacional eficiente e, acima de tudo, um forte compromisso social do governo, garantindo o acesso igualitário aos recursos políticos indispensáveis ao exercício pleno da cidadania. (Dahl, 1999: 200)
Enfim, vivemos numa época na qual princípios democráticos encontram recursos tecnológicos relevantes para a ampliação da participação política. Dificilmente voltaremos a processos de deliberação pública como a Assembléia popular ateniense; entretanto, é bastante provável que as mídias digitais de caráter bidirecional, como a Internet, auxiliem no alargamento da participação política, vencendo algumas das limitações que as distâncias geográficas impunham. Talvez a forma ideal da democracia – o “governo do povo” – não venha a se consumar em toda sua magnitude, porém é perfeitamente possível promover sociedades mais inclusivas ou poliarquias[6], onde a competição política permita um aumento das chances de influenciar e intervir na agenda governamental. Para a consecução deste objetivo a utilização das recentes tecnologias de comunicação e informação é de suma importância, pois possibilitam a expressão de descontentamentos, desejos e aspirações de cidadãos abastecidos permanentemente com informações vindas de diversas fontes independentes, auxiliando na formação de uma opinião pública ampliada e de uma cultura política ativa.
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