Considerada uma das mais belas praias em todo o mundo, Jericoacoara, localizada no litoral cearense, pode se transformar em mais um destino brasileiro massificado pelo turismo descontrolado.
Originalmente uma vila de pescadores, Jeri, como é carinhosamente chamada pelo seu povo, vem perdendo a sua peculiar tranqüilidade por conta de uma “Requalificação Urbana”, que está agitando ambientalistas, comunidade nativa e donos de pousadas em uma verdadeira batalha para impedir a implementação de parte do projeto proposto pelo Plano Diretor, de autoria do Governo do Estado do Ceará. Segundo a comunidade local o Plano Diretor irá descaracterizar a vila, além de proporcionar condições para o aumento desenfreado do turismo de massa.
Era uma vez...
Jericoacoara é o típico destino turístico que evoluiu com a “propaganda boca-a-boca“, só ganhou maior destaque no final da década de 80, quando foi divulgada como uma das mais belas praias em todo o mundo, segundo uma publicação norte americana. Em 1992, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renovável (Ibama), transformou a região em Área de Proteção Ambiental (APA), com regras que impediam, por meio da normativa número 4, a construção de dois pavimentos ou edificações superiores a 4 metros de altura, piscina e a ampliação do número de pousadas na vila.
Anos depois, a mando do governo do estado, o Instituto de Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace), promoveu uma Regularização Fundiária em Jericoacoara, durante os últimos dois anos e meio, a qual transformou as posses de terrenos dos nativos em
escrituras registradas em cartório. Em seguida, o Estado do Ceará adquiriu um empréstimo de US$ 140 milhões do Banco

Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento – Banco Mundial (Bird), para serem investidos em Planos Diretores distribuídos a diversas cidades cearenses. Jeri foi uma das localidades escolhidas para receber os benefícios do Plano Diretor, por sua vez, desenvolvido pela Secretaria de Infra-Estrutura do Estado do Ceará (Seinfra).
A última mudança sofrida por Jeri foi a recente transformação da região em Parque Nacional. Curiosamente a vila ficou fora das divisas do Parque, sendo considerada uma área de uso sustentável, enquanto que o Parque, de proteção integral. Cerca de 1700 pessoas moram dentro da área do Parque e, de acordo com a lei, podem ser retiradas mediante indenização.
Problemas a vista
Segundo os ativistas de Jericoacoara, é possível apontar vários problemas que estão ocorrendo atualmente. Um deles é a vertiginosa especulação imobiliária que se abateu sobre a vila. Para eles, esse fato tomou força devido à Regularização Fundiária que houve no local. A explicação dada é simples: com a terra regularizada, os nativos podem vendê-la sem que o comprador enfrente qualquer tipo de transtorno. Com isso, a população de Jeri começou a receber ofertas astronômicas por seus terrenos, muitas delas, até dez vezes maiores que o preço que valiam antes. As conseqüências da especulação vão de encontro com o processo de favelização do local, já que os moradores locais sucumbem às tentadoras ofertas, passando a viver nas periferias da vila, e ainda entregam suas propriedades normalmente localizadas em regiões centrais da vila, a investidores que, provavelmente, as utilizarão para a construção de hotéis.
De acordo com o assessor especial do superintendente do Idace e coordenador dos trabalhos de demarcações em Jericoacoara, Wilson Brandão, a medida foi necessária para acabar com os conflitos de disputas de terras, que eram muito comuns no local. Segundo ele, em um montante de 500 lotes, de 20% a 30% desses terrenos eram conflituosos, por conta da comercialização da terra para mais de um comprador. “Conseguimos resolver 95% dos casos de irregularidade”, disse.
Outro grande problema que é apontado pela comunidade de Jericoacoara acabou surgindo com uma constatação do Idace. Jeri é zoneada em oito sistemas de terra, sendo possível construir apenas em áreas denominadas como Sistema de Terra Oito. Segundo o assessor do Idace, na época em que foram realizados os trabalhos de regularização fundiária em Jeri, descobriu-se que toda a área destinada à construção (Sistema de Terra Oito) já havia sido ocupada. Sendo
assim, foi sugerida a ampliação do sistema para que o a vila pudesse receber os equipamentos previstos no Plano Diretor e ainda contasse com uma futura expansão.
A partir daí, o Ibama modificou a normativa de número 4, que então fazia restrições a construções na vila, para a liberar edificações com dois pavimentos e limite de 7,5 metros de altura, a construção de piscinas e a possibilidade de aumento do número de equipamentos hoteleiros, casualmente indo de encontro com o que prevê o Plano Diretor para Jericoacoara. A mudança da normativa é o elemento catalisador das lutas contra o Plano Diretor, que a comunidade vem travando com órgãos do governo estadual. A exemplo, Jericoacoara já ganhou construções de pousadas com dois andares e até o aterro de um mangue para a edificação de um resort.
Plano Diretor
Na verdade, a comunidade da vila não é totalmente contra o Plano Diretor, isto porque o plano prevê a implementação de vários equipamentos comunitários, como centro de turismo e cultura, creche, posto policial, estacionamento para a vila, mercado público, centro esportivo, etc. “Somos contra a descaracterização Jeri, que é naturalmente uma vila de pescadores. Acreditamos que os equipamentos possam ser úteis, mas não estamos de acordo com alguns itens do Plano Diretor”, argumenta a presidente do Conselho Comunitário de Jericoacoara (CCJ), Maria Filizolina. Segundo ela, a comunidade de Jeri é contra o calçamento da vila, o alargamento de ruas e ainda a modificação do padrão arquitetônico que poderá ocorrer com a liberação de edificações com 7,5 metros de altura.

Outra grande contestação da comunidade é o fato
de terem sido excluídos das implementações finais do plano. De acordo com Paula Fraser, tesoureira do CCJ e coordenadora dos estudos de contra proposta ao Plano Diretor, uma comissão comunitária analisou o documento por cerca de seis meses para elaboração da contra proposta sobre as previsões do plano, que foi apresentada à Seinfra. Segundo a tesoureira, a própria Seinfra pediu à comunidade a elaboração de uma contra proposta, mas que não está sendo levada em consideração no andamento das obras na vila. O EcoViagem procurou a Seinfra para falar sobre o assunto, mas até o momento do fechamento dessa matéria não obteve retorno.
Processo civil
Para tentar frear as máquinas que estão trabalhando em Jericoacoara, a comunidade espera o desenrolar dos últimos acontecimentos na vila. Trata-se da Ação Civil Pública com pedido de liminar para a paralisação das obras de requalificação de Jeri, que vai contra ao Ibama, Estado do Ceará (Seinfra), Município de Jijoca de Jericoacoara, o qual a vila faz parte, e a empresa construtora que realiza as obras. O autor da ação é o promotor público Paulo Henrique Trece, que embasou a ação contestando a falta de Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (EIA/RIMA), que, conforme a lei, é exigido para execução de obras do porte das que estão previstas para Jericoacoara.
A ação provocou de imediato uma reunião, que aconteceu no dia 24 de junho, envolvendo o Procurador Geral da República do Ceará, Dr. Alessander Sales, Ibama, Seinfra, prefeitura de Jijoca e o promotor Paulo Henrique. Como resultado, foi pedida a paralisação das obras por 15 dias até que se realizasse uma vistoria por parte dos técnicos da procuradoria da República, para verificar a necessidade ou não do EIA/RIMA para a execução das obras em Jeri. Para o Procurador Geral, o caso necessita de uma criteriosa avaliação, e os técnicos que foram enviados a Jeri devem apenas levar em consideração os aspectos ambientais.
Segundo o geógrafo e professor da Universidade Federal do Ceará, Jeová Meireles, que representou a comunidade local junto à comissão da procuradoria que visitou Jeri, os técnicos receberam informações sobre todos os aspectos que tocam a necessidade do EIA/RIMA para que as obras possam ser continuadas. Para o professor, o Ministério Público tem de se municiar com informações para entender como deve ser o uso do solo em Jericoacoara.
Mais luta
A comunidade de Jericoacoara já enviou carta ao Banco Mundial informando suas constatações, incluindo o alerta sobre o jogo político, que acreditam existir nas coincidências das mudanças da normativa do Ibama e da regularização fundiária, conseqüentemente casadas com o Plano Diretor. Segundo a assessoria de imprensa do banco, a instituição remeteu uma carta manifestando o recebimento do material e aproveitou para informar que a política do Banco Mundial é a de não intervir em assuntos de ordem política.
Outra ação da comunidade foi a aproximação da Ordem dos Advogados do Brasil - Ceará (OAB/CE) sobre o caso. Segundo o presidente da comissão de três advogados que analisará os fatos em

Jericoacoara, Dr. Arimá Rocha, que faz parte do Conselho Estadual de Meio Ambiente da OAB/CE, será realizada uma audiência pública na vila de Jeri no mês de agosto, que reunirá toda a comunidade ativa do local para discussão dos fatos. “Temos conseguido resultados positivos nas intervenções que a OAB tem participado. Vamos estudar o caso de Jeri, e se for preciso, revogaremos as ilegalidades encontradas com medidas judiciais”, disse.
Quanto deu?
No final das contas, Jericoacoara vive momentos tensos por parte dos últimos acontecimentos que envolvem o Programa de Fomento de Urbanização (Prourb) do Governo do Estado do Ceará, o qual recebeu financiamento do Banco Mundial para a realização das obras de “Requalificação Urbana” pertencente ao Plano Diretor para Jeri, em que estão envolvidos a comunidade da vila, a prefeitura de Jijoca, Ibama CE, Seinfra, governo do Estado, Ministério Público e os ativistas que querem preservar a condição de vila de pescadores ao local, com intuito de que Jericoacoara permaneça como um destino turístico de visitação equilibrada mantendo as características de tranqüilidade e peculiar presença nativa.
Para o Ibama Ceará, segundo a chefe da divisão de Unidades de Conservação, Dulcelene Santos, “o lado social fala mais alto que o ambiental no Brasil”, argumenta sobre a implementação do Plano Diretor. De acordo com ela a lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) prevê cinco anos para a elaboração de um Plano de Manejo para áreas denominadas como parque, mas que o Ibama está adiantando o processo pedindo licitação imediata, para tranqüilizar a comunidade sobre um possível aumento de turistas nas dependências do Parque, que não compreende a vila.
De acordo com Alex Furtado, que encabeça as reivindicações em prol de Jericoacoara por meio da ONG SOS Jeri, as obras no vilarejo “estão abrindo estradas largas que vão do nada a lugar nenhum descaracterizando totalmente o local. Isso é exatamente o contrário que o vilarejo precisa”, disse. Quanto aos equipamentos comunitários ele lembra que Jericoacoara já possui dois postos de saúde, mas que não há médicos para atendimento. “Jericoacoara é famosa por ter suas ruas de areia e ser um autêntico vilarejo, este é o diferencial que atrai turistas de todo o mundo. Se Jeri necessitasse realmente de benfeitorias sociais deveriam seguir os padrões originais da vila e não chegarem aqui com projetos arquitetônicos”, completou.
Serviço
Em Jericoacoara a ONG SOS Jeri disponibiliza um site com informações sobre os últimos acontecimentos que a vila vem sofrendo.
SOS Jeri
www.sosjeri.com.br